sexta-feira, 4 de junho de 2010

Camille Flammarion


46)15 Abr 2010
Um Texto Crítico (mas justo) do Astrônomo Flammarion sobre a Humanidade Terrestre
(1)


No livro Sonhos Estelares, o grande astrônomo francês Camille Flammarion imagina um fenômeno de bilocação (ou desdobramento) do seu espírito pelo espaço infinito afora, narrando então suas impressões e as reflexões que essa viagem espacial lhe sugere. Em certo instante, ele se encontra a 4 bilhões de quilômetros da Terra, na distância aproximada do planeta Netuno e vê o nosso planeta com muita dificuldade, como um grãozinho de poeira perdido no espaço. Como se poderá ver, trata-se de um texto meio ácido, mas nem por isso menos verdadeiro, sobre o estado ainda quase selvagem do homem e da humanidade que, em seus desvarios, usam como pretexto o sagrado nome de Deus (inclusive os que se dizem ou se diziam cristãos). Diz ele então:

"O ser definido pelos habitantes da Terra, até aqui, como Deus, não existe. O homem concebeu um Deus à sua imagem e semelhança, atribuindo-lhe não somente suas aspirações mais elevadas e suas virtudes mais sublimes, mais ainda e sobretudo, suas prevaricações mais grosseiras e seus vícios mais perversos".
"É em nome desse pretenso deus que presidentes, monarcas e pontífices têm, em todos os séculos e sob a capa de todas as religiões, submetido a humanidade a uma servidão de que ainda não pode se libertar; é em nome desse deus, que "protege a Inglaterra", que "protege os Estados Unidos", que "protege a França", que "protege a Alemanha", que "protege a Rússia",etc., que protege todas as dissenções e todas as barbarias; é em nome dele que, ainda em nossos dias, os povos pseudo-civilizados de nosso planeta estão perpetuamente armados e em guerra uns contra os outros, excitados como cães furiosos a se precipitarem em uma refrega acima da qual a hipocrisia e a mentira, assentadas sobre os degraus dos palácios, fazem reinar o "deus dos exércitos", que benze os fuzis e mergulha suas mãos no sangue fumegante das vítimas, para marcar com ele a fronte dos governantes ungidos. É a esse Deus que se elevam cânticos e altares. Foi em nome dos deuses do Olimpo que os gregos condenaram Sócrates a beber a cicuta; foi em nome de Jeová que os príncipes dos sacerdotes e os fariseus crucificaram Jesus; foi em nome de Jesus, tornado deus a seu turno, que o fanatismo fêz, ignominiosamente, subir à fogueira Giordano Bruno, Vanini, Etienne Dolet, João Huss, Savonarola, e tantas outras vítimas heróicas; que a Inquisição impôs a Galileu mentir à sua consciência; que milhares e milhares de desgraçados, acusados de feitiçaria, foram queimados vivos, em cerimônias populares; que Ravaillac apunhalou Henrique lV. Foi com a bênção expressa do papa Gregório Xlll que as matanças da noite de São Bartolomeu ensanguentaram Paris, e que os livres pensadores da Reforma foram expulsos da França; foi para abolir pretensas heresias que milhares e milhares de pessoas respeitáveis foram queimadas vivas. Empunhando a cruz foi como os espanhóis massacraram selvagemente os pacíficos indígenas das Américas, num dos episódios mais covardes e vergonhosos da História. Foi em nome dos deuses adorados em Roma que os mártires cristãos sofreram os mais aterradores suplícios; foi em nome do deus cristão que os energúmenos do bispo São Cirilo lapidaram a bela e sábia Hipácia, e que, mais tarde, o bispo de Beauvais conduziu à fogueira a virgem de Domrémy (Joana D'Arc); foi em nome da Bíblia e do Deus cristão que, na Idade Média, as Cruzadas exterminaram ferozmente os seus vizinhos; foi em nome de Allá que os estandartes de Maomé cobriram a Europa de exércitos de assassinos; que Átila, Gengis Khan e Tamerlão assinalaram os caminhos de suas conquistas por pirâmides de cabeças decepadas; é em nome de tais inspiradores imaginários que ainda atualmente tantas almas piedosas e inúteis se condenam a bizarras penitências e doações financeiras em templos e conventos, que certas seitas fanáticas estrangulam crianças e bebem-lhes o sangue. Símbolo da opressão dos povos, do assassinato e do roubo, tal ser infame não existe, nunca existiu!"
"Fazendo um deus à sua imagem e semelhança, tão miserável como eles mesmos, os homens assemelham-se a macacos que, supondo elevar-se à idéia de Deus, tivessem feito dele um grande macaco -- a cães que dele fizessem um grande cão, -- a pulgas que o representassem sob a forma de uma grande pulga. Mas, do fato de que esse deus minúsculo não existe, não se segue que o universo marcha sem desígnio, sem objetivo e sem leis. Se os crentes de todos os ritos estão em erro, os negadores de todo princípio inteligente ordenador do universo não o estão menos".
"Mas que, em nossa época, nações poderosas queiram anexar ou mesmo destruir nações mais fracas, alegando mesquinhas razões para encobrir interesses econômicos, empregando suas armas para criar monstruosas chagas sociais e decorando com a imagem de uma providência local as suas bandeiras de guerra ensanguentadas, como ao tempo de Joana d'Arc, de Constantino ou de Davi, eis aí certamente um anacronismo chocante, um misto de impostura e de credulidade, de hipocrisia e de estupidez, indigno da era de estudo leal e positivo, na qual vivemos, e que levaria ao desprezo de qualquer homem independente, todos os escalões e instâncias que vivem às expensas de um tal sistema". (Camille Flammarion, Sonhos Estelares, edição da FEB, 1941).

O sábio astrônomo francês, fundador da Sociedade Astronômica de França e diretor do Observatório de Juvissy, escrevia esse texto no final do século dezenove (a tradução brasileira, hoje esgotada, é que é de 1941). Será que a nossa humanidade mudou muito desde então, ou ainda temos um texto, em muitos pontos, bastante atual?

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